segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O Médico Real - X

Um balançar leve e ritmado como um embalo materno aos poucos se apoderava dos sentidos que despertavam. Entretanto, ao invés do característico calor gentil, um frio fustigante obrigava o corpo a mover-se abruptamente sob calafrios. Além disso, o odor de ferro era incômodo o suficiente para reviver ecos desagradáveis.

O cheiro de mar e sangue que exalamos...

A maldita frase foi o impulso que faltava para Charles jogar-se para frente, como que atingido por um solavanco. A visão embaçada aos poucos clareou-se, e a dor forte na parte de trás da cabeça terminou de trazê-lo de volta à realidade.

Tudo parecia fazer sentido. As roupas ensopadas e a ferida leve eram um preço barato a se pagar pela explicação lógica que encontrava: tropeçara em uma madeira apodrecida e batera a cabeça, caindo desacordado no raso por alguns minutos e espalhando um pouco de sangue n'água. Apesar da dor no corpo pela posição desconfortável, o mapa estava a salvo em sua casaca e apenas isso importava Sorriu, sentindo-se vitorioso sem um motivo claro.

Talvez tenha sido um sonho tempestuoso e nada mais. Embora certamente eu tenha vencido no final.

Satisfeito, recuperou sua cartola e o lampião ainda aceso caído na ponte, misturando-se novamente à escuridão solitária do porto.

Embora talvez o desmaio na água gelada esteja me causando uma leve febre...

Seguindo à risca as indicações do mapa e superando a tontura que aumentava a cada passo, não esperava descobrir caminhos tão imprevisíveis desembocando em um velho e esquecido navio, no qual um grande rombo no casco atestava sua forçada aposentadoria. Por um instante identificou-se com ele, desatino que atribuiu à febre.

Aqui se encerra meu destino final. Isso sou capaz de jurar.

Não precisou procurar demais ao entrar no cadáver oco de madeira apodrecida. A um canto, o X marcado no mapa combinava-se com o tampo de uma caixa simples, facilmente ignorável por desavisados. Como e porque aquele local fora escolhido por Percy, foi uma curiosidade fugaz na mente do médico, desaparecida assim que o débil lacre se desfez.

Jamais contaria com a possibilidade de um pirata esconder com tanto cuidado algo tão peculiar. 

Entre curiosidade e desapontamento, agarrou o pequeno frasco de vidro envolvido cuidadosamente em um pergaminho, o único conteúdo da caixa. Desenrolou cuidadosamente o pequeno bilhete, sem saber se encontraria a solução do mistério ou o começo de outro.

Depois de uma vida vivida para trair, roubar e torturar, cheguei ao último porto.
Mas sabemos que não deve ser tão pior do que os estábulos a que estamos acostumados.
Agora que está cansado de vagar a esmo e sua herança é apenas o ódio dos inimigos e as dívidas não pagas, é chegado o dia da fuga definitiva. A dose exata para tudo terminar como deveria, da maneira que escolhi.
Nos vemos no inferno, cavalheiro da sorte.

De mim para mim mesmo,
em algum lugar do passado.

Apesar de tremida, a caligrafia trazia verdades que apenas o álcool é capaz de elucidar. 

Fitou serenamente o líquido esverdeado que conhecia muito bem.

O nome Percy-alguma-coisa não significava nada. É um disparate acreditar que um marujo de baixo escalão pensara em algo tão refinado. 

Talvez ele nem tivesse existido, pra começar. Tanto faz.

Aquela era uma estratégia digna apenas do cirurgião e embusteiro Charles Atkins.

4 comentários:

  1. Esse final dá muito bem para ser o início de uma nova saga do cirurgião e embusteiro Charles Atkins!
    Ótimo conto filha ^_^...
    Gostinho de quero mais...rsrsrs...

    ResponderExcluir
  2. Foi quase como achar o a cápsula do tempo escondida embaixo da estátua da praça Tiradentes!
    Parabéns, gostei muito da história. Também acho que devia ter continuação!

    ResponderExcluir
  3. Saudações


    Muito bom, nobre Ana. Ficou ótimo.
    Uma sequência seria bem-vinda, em foco...

    Mas lhe parabenizo.^^


    Até mais!

    ResponderExcluir
  4. Depois de ler esse bilhete fiquei ainda mais curioso para saber o final, por isso vou ler agora.

    ResponderExcluir