segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O Médico Real - VIII

Um lugar? Você disse que se lembra de um lugar? Um ponto específico, marcado em um mapa e tudo? Um mapa que veio com você?

Vejo que memorizou bem minhas palavras, dada a precisão com que as repetiu. Charles respondeu com um toque de ironia ao marinheiro estirado sobre um barril de cidra apodrecido. Ele mantinha sua caneca empoeirada suspensa no ar, encarando o médico com ar assombrado.

Bem, é a primeira vez que vejo alguém com uma lembrança tão forte por aqui. Se é tão importante, é melhor correr antes que ela desapareça. – virou a caneca em um gole, sorvendo a areia que logo em seguida deslizou pelas costelas expostas – Uma coisa dessas só pode ser resolvida pela Rainha.

E vocês têm uma Rainha? Charles levantou a sobrancelha, estranhando mais o respeito de um pirata pela Rainha do que a efetiva existência dela.

Aqui é Londres, amigo! É claro que temos Rainha! ele abriu os braços e soltou um riso rouco e debochado, como se aquilo fosse óbvio demais para ser comentado.

Que seja. Tenho pressa mesmo, se é o que preciso... onde posso encontrá-la?

Simples. Procure pelas cabeças abaixadas. – ele apontou uma direção com o dedo podre – Vai reconhecer as ditas no momento em que as enxergar.

Julgando que não arrancaria mais nenhuma informação útil do pirata em decomposição, Charles retomou a marcha na direção indicada. Sentia sua própria pele descascar-se e o pulso diminuindo o ritmo pouco a pouco, o que aumentava seu senso de urgência. Precisava sair dessa Londres antes que fosse tarde demais para seu corpo.

Impossível saber o quanto andara e onde estava exatamente quando o clima do ambiente pareceu mudar e o silêncio começar a se impor. Aos poucos, as figuras disformes espalhadas por todo o lugar foram interrompendo seus afazeres caóticos até se voltarem a uma só direção e, com sincronia inacreditável, caírem ao chão de joelhos.

Oh, mas esse aqui eu desconheço!  

Concentrado no fenômeno ao seu redor, o cirurgião não percebeu a voz feminina e estridente se dirigindo a ele, o único ainda em pé. Quando levantou os olhos, deu com uma figura feminina avantajada e grávida, usando largas vestes imperiais em frangalhos e uma peruca negra embaraçada. Ela o fitava com olhos vazios típico dos loucos, trazendo um bebê em farrapos nos braços e nove crianças cadavéricas de diferentes idades agarradas às suas saias.

E não é que é mesmo a Rainha?  

Vendo-se entre o assombro, o fascínio e o pastiche, Charles não evitou um sorriso e fez uma longa mesura, como ditava a tradição e as boas maneiras. Afinal, ainda era um médico real.

3 comentários:

  1. Essa história está cada vez melhor com o Charles a vive nesse "limbo" de piratas atrás do seu tesouro o/o/...e o tempo urge!!Que venha a próxima segundaaaaaaaaa

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  2. Saudações


    Prevejo um conto dedicado ao Charles, personagem, para breve...^^


    Até mais!

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  3. Estava sentindo falta de diálogos, mas agora minha vontade foi saciada.

    Bom diálogo e ótima descrição de personagens. A imagem da grávida com o bebê e as 9 crianças cadavéricas daria uma pintura sensacional. A cidra apodrecida me deu nojo e curiosidade.

    Esse foi meu capítulo favorito até agora.

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