quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Magellan VII - Parte VI

E depois de tudo aquilo, mais casos de morte aconteceram, uma loucura. Resultado: podem ver como o clima da cidade está estranho. As pessoas andam temerosas de serem esfaqueadas na rua, pode isso? Bem, cada vez mais parece um medo justificável...

Dentro da cabine branca e arredondada para três pessoas, o veterano dirigia e explicava o que sabia sobre a situação. Por onde passavam havia uma instabilidade no ar, como um vaso paralisado a um milímetro da queda no qual um leve sopro seria o suficiente para espatifá-lo.

Está muito pior que na enfermaria... Jano, pode ir mais depressa?

Ah, se posso! Você sabe como nossas unidades móveis são potentes, não é Kari? Segurem-se!!! – ele sorriu como se satisfeito pelo pedido e puxou ao máximo o controle em forma de U para cima.

Entretanto, já próximos da rodovia que levava ao Centro Espacial, avistaram um enorme amontoado de Unidades Móveis Urbanas formando uma barreira, ao redor do qual um grupo fazia um fuzuê. Ao verem a unidade móvel de Jano se aproximando, usaram seus comunicadores para amplificar a voz enquanto atiravam no veículo qualquer coisa que tivessem à mão. Em meio à gritaria, algumas afirmações repetidas podiam ser discernidas.

Ninguém pode sair!! Ninguém sai dessa cidade até descobrirem os monstros!!! Se o Governo não fizer, nós mesmos faremos então!!!

O que esses malucos querem agora? Jano cerrou o cenho e manteve o olhar no trajeto, falando com repentino rancor – Eu vou é passar por cima! Essa U.M. não vai cair fácil!

Ele foi a toda velocidade na direção da massa, mas no último instante Ymir esticou-se e forçou o controle para o lado, tirando o veículo da direção das pessoas e freando. Jano o censurou com o olhar, inconformado pela manobra arriscada.

Pense bem, Jano. Ymir engoliu em seco, tentando arrumar as palavras – Pense bem no que estamos fazendo. Atropelando pessoas sem nenhum remorso, isso é normal? Estamos fazendo bobagens... sem entender o porquê. Nós...  segurou timidamente a mão de Kari, como se pedisse desculpas e ajuda – Nós não podemos perder de vista o que é importante. Desculpe se não me expresso bem, minha cabeça dói.

Ela retribuiu o aperto de mão, aliviada por ver o tom dos olhos dele voltando ao normal, embora sua pele continuasse pálida como a de um anêmico. Piscando várias vezes, Jano pareceu lembrar-se de algo muito importante e limpou o suor da testa.

Jesus Todo-Poderoso, o que eu estava fazendo? E... o que essa cidade está fazendo?

Ainda não sabemos, e mesmo se não pudermos descobrir, ao menos precisamos nos manter sãos. Kari olhou com firmeza para os dois rapazes.

Um baque surdo no veículo os lembrou de que havia uma turba amedrontada lá fora, que tentava tirá-los da segurança interna utilizando partes das unidades móveis abatidas. Lentamente, Jano deu a ré para sair e ativou a flutuação, mas algumas pessoas se penduraram e isso não permitia a partida. Ingenuamente, ele abriu um pouco a sua porta para tentar afastá-los no grito, mas foi puxado violentamente para fora no mesmo momento.

JANO! Kari gritou e agarrou o controle ao mesmo tempo para que a U.M. não tombasse, mas não conseguiu evitar a queda do amigo e acabou flutuando ainda mais para cima, impossibilitando trazê-lo de volta.

FUJAM DAQUI LOGO, ELES ESTÃO LOUCOS! LOUCOS! - foram as últimas palavras de Jano antes de ser coberto pelos golpes furiosos da multidão, cujos integrantes desocupados voltaram olhos gulosos ao veículo branco. Uivando de frustração, Kari não teve escolha a não ser acelerar a toda velocidade para salvar ao menos duas vidas.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O Médico Real - V

Ei, Glasby, passa pra cá esse rum, seu sacripanta!

O velho John tinha um navio galante.. e todas as meretrizes do cais...até que uma corda ligeira... fez o John ser passado pra trás...

Um dia aquele Silver aparecerá aqui também, e nesse dia eu...

De olhos fechados, Charles discernia a algazarra dos piratas espalhados pelo porto, a música ruim e o odor marítimo misturado ao perfume barato de prostitutas. Em terra, eles não passavam de arruaceiros da pior espécie, causando todos os tipos de problemas e lembrando-o de que vivia entre os proscritos da sociedade, independente de sua educação superior.

Mas graças a isso, posso trabalhar livre de moralismos desnecessários. É o preço a se pagar pelo avanço científico... mas... o que há com essa cama, mais dura do que o usual...

Charles se mexeu um pouco, fazendo uma leve careta e abrindo um dos olhos. Os borrões que enxergou pareciam enganar seus sentidos, mas quando viu-se totalmente alerta, nada mudara no cenário. Grupos de piratas jogavam, bebiam, cortejavam e brigavam, o que a princípio era completamente normal.

Estamos todos bêbados, bêbados de cair...
e todos que não estiverem bêbados, deem o fora daqui!*

Tirando o fato de que alguns estavam apodrecendo, outros eram esqueletos com vestes rasgadas e puídas, que o chão e os objetos eram feitos de velhas ossadas e que as garrafas estavam cheias de areia, não de rum. A atmosfera viciada como uma nuvem de carne podre não incomodava as criaturas, que continuavam a cantoria ser dar atenção ao aterrorizado recém-chegado ajoelhado na beira de um mar sem ondas.

O açougueiro sem dedo que trabalhava no cais
Passava o dia fazendo piada da falta que o dedo lhe faz!*

Charles levantou-se cambaleante,o ambiente bizarro rodopiando ao seu redor. Sua capa e cartola haviam sumido e dado lugar a uma veste simples de viagem. Calçava botas de couro em vez dos sapatos lustrados e seu longo rabo de cavalo caía pelo ombro; reconheceu com asco que tudo estava assustadoramente conforme sua época de trabalho em alto-mar.

O que... é isso...? – finalmente conseguiu formular uma sentença completa entre os pensamentos atordoados – Onde... eu... estou...?

Onde mais poderia estar?

Apesar de tê-la enterrado no fundo de seu espírito junto com tudo que julgava indigno, Charles reconheceria aquela voz em qualquer situação. Para seu próprio desgosto, olhou para o lado e viu um pirata mais alto e forte que ele com os braços abertos em uma cordialidade exagerada. Sua pomposa figura de capitão não trazia nada de cadavérico ou anormal, excetuando-se, entretanto, o nó de enforcado pendurado em seu pescoço.

Bem-vindo a Londres, velho amigo! A nossa Londres!

... MORTIMER? – Charles saltou de lado, gelado como se seu sangue parasse de correr – Não pode ser... eu... eu fiz sua autópsia!!!

Eu sei! Eu estava lá! – o pirata riu grotescamente, dando um trago em seu cachimbo e coçando a barba bem feita – Faz tempo mesmo, hein Atkins... mas eu me lembro de tudo, claro... sabe que é burrice das as costas ao passado, não é? É como...

Ele se aproximava do médico, que o encarava chocado demais para racionalizar tantos absurdos e reagir adequadamente. Mas quando o rosto do capitão aproximou-se demais e transfigurou-se em uma caveira hedionda, seu senso de perigo pareceu despertar.

– … é como dar as costas a um pirata, não concorda, cirurgião da peste???

Gritando horrorizado, Charles desatou a correr pela paisagem desconhecida ao som das risadas vingativas do capitão putrefato.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Magellan VII - Parte V

Alta madrugada. Uma mulher entra em casa, descalça, despenteada e vestindo um jaleco branco coberto de manchas vermelhas. Vai direto para o chuveiro e, antes que termine o banho, a porta do banheiro se abre repentinamente.

Mas quem é você?

No dia seguinte, terríveis notícias se espalharam: um incêndio incompreensível matara uma família inteira durante a noite e dois cadáveres degolados foram encontrados no mesmo bairro. Desnecessário dizer o quanto esses acontecimentos abalaram o estado moral dos cidadãos, que ficaram chocados apenas pela possibilidade de tais barbáries serem executadas.

Kari, entretanto, tinha problemas mais urgentes para se preocupar. Ymir parecia ter envelhecido dez anos na semana posterior ao incidente e se tornava a cada dia mais distante do homem que ela conhecia, tanto que o casamento ficou esquecido em algum lugar do caminho.

Não tocou na comida de novo...? Desse jeito vai acabar doente... Kari se aproximou do namorado, que passava os dias olhando perdidamente pela janela do quarto, de pijamas e barba por fazer. Parecia que esqueceria até de respirar se ela não estivesse por perto.

Não tenho fome. desviou-se do toque dela, ranzinza.

Eu não sei mais o que fazer com você, sabia... ela desabafou, já cansada da situação Eu sei que foi difícil, mas você não precisa agir... assim.

Você não sabe nada. Você não viu. ele resmungou baixo, imóvel. A atmosfera estava pesada a ponto de Kari sentir-se enjoada. O desespero transpassou seu peito e ela deixou que transbordasse.

Eu sinto muito, Ymir. abraçou-o com força Sinto muito mesmo. Se eu pudesse... eu trocaria de lugar com você. Se eu pudesse entender o que está acontecendo...

VOCÊ NÃO PODE ENTENDER! ele a sacudiu pelos braços em um rompante violento SE ENTENDESSE, NÃO IA QUERER ESTAR NO MEU LUGAR!!!

Assustada pela reação inesperada, Kari desvencilhou-se com força e despejou no rosto dele o copo d'água que mantinha ao lado da cama, fazendo-o parar. Esfregando os braços ainda doloridos, ela se afastou dois passos para trás, incrédula, enquanto os dois se encaravam transtornados.

Eu não sei... colocando o rosto entre as mãos, Ymir desabou – eu não sei o que está acontecendo comigo...

Kari limpou as lágrimas que escorriam pelo rosto e, ainda tremendo, tentava colocar os pensamentos no lugar quando a campainha soou. Ao atender, Jano Bichel cumprimentou-a com uma expressão preocupada no rosto, rara no rosto do astronauta veterano.

Olá Kari. O Ymir está em casa também?

Ele está... descansando um pouco, mas o que aconteceu, Jano? Sua cara está péssima, e... você também foi liberado tão rápido de TerechKova?

Na verdade, eu precisava que vocês voltassem comigo até lá. É sobre o Loge, mas... não posso falar aqui.

Kari respirou fundo, pensando no melhor jeito de recusar, mas Ymir apareceu atrás dela em seguida sem se importar com seu aspecto doentio e pijama amassado, parecendo interessado.

Que tem o Loge...?

Antes que Jano pudesse continuar, uma algazarra começou a poucos metros dali. Dois grupos pareciam estar se enfrentando com qualquer coisa que pudessem usar como arma, inclusive os próprios punhos e dentes.

Mas o que é AQUILO? - Kari arregalou os olhos enquanto as palavras ouvidas na enfermaria voltavam a sua mente: História Antiga acontecendo ao vivo. Não que ela entendesse muito disso, mas ouvira falar que antigamente esses conflitos eram comuns entre as pessoas. Só não imaginaria presenciar isso em sua geração.

Por onde você andou esses dias? Começou há uma semana, desde os assassinatos e o incêndio. A cidade está a cada dia pior.

Andamos... ocupados. Ymir engoliu em seco, abraçando Kari pelo ombro – Mas conte tudo enquanto vamos para TerechKova.

Certo. Estou com a Unidade Móvel Especial, então será rápido.

Apesar do receio inicial, Kari olhou de viés para a confusão próxima e concluiu que seria melhor sair logo dali, mesmo que o destino fosse incerto.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O Médico Real - IV

A Sorte é uma dama volúvel e imprevisível. Ao invocá-la, deve-se guardar o devido respeito para não aborrecê-la e acabar sofrendo consequências desafortunadas. Sendo sua natureza tão semelhante à do mar, não é surpresa que os piratas sejam mestres desse cortejo, verdadeiros cavalheiros da sorte.

Você tem que tratá-la bem, entende? Não só quando precisa de um favor. Tem que tratá-la como a mulher do seu porto mais importante!

Phill era um desses que se dizia agraciado pessoalmente pela Sorte, e realmente sua vida relativamente longa estampava-se em suas rugas e cicatrizes. Cego do olho esquerdo e com o quadril desconjuntado, agora adicionava uma amputação à coleção de sequelas. Mas não tirava o sorriso dos dentes amarelos e falhos, pois jamais faria pouco caso da graça de sua Dama.

Pois a Sorte trouxe um cirurgião endemoniado pro nosso navio! Não um desses carniceiros sem jeito, mas um que sabe cortar a carne e costurar o remendo.

Ele coçava a barba e elogiava a operação bem-sucedida, soltando um riso rouco e batendo na coxa direita, um pouco acima da prótese de madeira que substituía o restante da perna. O fedor de suas roupas surradas fazia jus à alcunha do “Gato Afogado”.

A cena se repete em um canto escuro das docas de Londres, três anos após seu enforcamento. Mas sua palidez mórbida denuncia que a conclusão será diferente.

Você sabe, velho Cirurgião, que eu não maldigo minha sorte. Eu não reclamo de como terminei. Eu sabia o que você faria. Não foi nenhuma surpresa.

Um tiro, dois, três. Certeiros e precisos, mas Phill não caiu.

Mas Cirurgião, “não foi surpresa” é bem diferente de “não guardei rancor.”

Mais três tiros acompanhados de três passos para trás, sem tirar os olhos do marinheiro perneta. Repentinamente, um estalo de madeira sob os pés, e Charles sentiu-se naufragar como um navio abatido. Em algum canto de sua mente, estranhou a profundidade – e se perguntou porque vestira justamente sua capa mais grossa e pesada.

E os outros estão ainda mais zangados do que eu, pois lhe atribuem a sorte que tiveram.

Ecoando essa sentença profética, o mundo de Charles escureceu.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Magellan VII - Parte IV

Ano 3115 CH  – Ciclo 13 – Semana 2

- ALGUÉM AJUDE!!! ALGUÉM, SOCORRO, POR FAVOR!!!!

A voz desesperada ecoou pelo Centro Espacial logo cedo, anunciando uma tragédia sem par: Loge Hirming, um dos tripulantes da nave Magellan VII, que voltara vitoriosa de Vênus há três dias... agora não passava de um cadáver desfigurado no chão de seu próprio quarto. 

Entre as pessoas que se aproximaram atraídas pelos gritos, a primeira a chegar fora Ymir, vizinho de quarto do astronauta mais velho.

- Ymir? O que está havendo? - Kari correu ao encontro dele, vendo-o deixar a passos lentos o grupo de testemunhas transtornadas. Ao olhar para ela, o azul celeste de seus olhos parecia ter se transformado em gelo e seu abraço foi tão forte que Kari precisou firmar os pés no chão para ambos não caírem.

- Vamos, você precisa descansar, amor.  - mesmo sem entender o que acontecia, abraçou-o de volta com determinação e falou com a voz mais suave possível, acariciando seus cabelos.

Todos que presenciaram a cena foram para a enfermaria, desmaiados, passando mal ou chorando copiosamente. Não se podia culpá-los, pois um ser humano morto daquela maneira, em plena época da 'passagem tranquila', era algo inconcebível. Ninguém se despedia desse mundo com menos de 150 anos, há gerações. E muito menos de forma violenta.

- É como História Antiga acontecendo ao vivo. – uma das testemunhas sintetizou. A situação só se acalmou quando a Diretora Alva tomou o controle da situação, mandando todos para suas casas.

- Por favor, após realizarem exames para atestarem suas condições de saúde, voltem todos para suas casas. Apenas os diretores e as autoridades permanecerão aqui. Não preciso dizer para que isso permaneça em sigilo em respeito aos sentimentos da família de Loge Hirming.

- Isso não é justo... - um dos engenheiros resmungou, sentado em sua cama – Todos nós somos da família...

- Quer dizer algo, Dr. Schultz? - a diretora voltou-se a ele, que ainda tinha um pouco de sangue do astronauta nas pontas dos dedos. Havia sido um dos poucos com força de vontade para chegar tão perto do corpo.

- Todos nós aqui somos família. Todos do Centro. Não é justo. Não é justo que você mande assim na gente, sua velha insensível! - ele levantou-se pronto a avançar em Alva, mas parou a um passo de distância dela, suando frio e com uma expressão desesperada no rosto. Todos o encaravam, incrédulos, inclusive a diretora.

- Desculpe, eu.. eu não sei... não sei... - ele voltou a sentar-se, balbuciando feito uma criança perdida. O silêncio instaurou-se, com exceção dos soluços de uma das garotas que voltara a chorar. Kari segurou com força o rosário entre seus dedos e apertou a mão de Ymir, que dormia.

No caminho de volta para casa, Kari dirigia e Ymir mantinha-se em silêncio, o olhar azul opaco perdido no horizonte. Um ou dois fios de cabelo branco recém-nascidos destacavam-se entre as mechas negras, mas ela tentou não pensar nisso e  iniciou uma conversação.

- Fique lá em casa essa noite. Vamos pedir algo para o jantar. Deve estar cansado de comida espacial depois de tantos meses de concentração, não é?

- Ele era o mais valente.

- Perdão?

- Ele era o mais valente de nós. O Loge. Ele foi o único que entrou na fenda...

Kari não sabia o que responder, nunca tinha visto o namorado assim. Nunca tinha visto ninguém assim, e nem sentido tamanha escuridão no coração. Era um medo desconhecido para ambos, de maneiras diferentes.

- No seu Budismo, Kari... as pessoas corajosas tem um lugar especial?

- Com certeza Loge tem um lugar especial agora. - ela reuniu toda sua coragem e conseguiu transmitir confiança na frase. Ymir suspirou. Obviamente eles não costumavam falar de religião, pois Kari sempre foi devota do Budismo de Sidharta e Ymir era um Ateísta Humanista convicto.

- Ele com certeza tem um lugar especial na História da Humanidade. - dito isso, Ymir deitou-se no colo dela e passou o resto do dia e da noite sonolento, como se estivesse sob efeito de drogas.